Sexta-feira 29 de Março de 2024

Queda de Granizo e Saraivada afecta Beira Alta e Trás-os-Montes

DR

IPMA

Em Portugal continental é possível observar-se a queda de granizo envolvendo pedras de razoável dimensão (designado por “saraiva”, se apresentarem diâmetro superior a 0,5 cm) em dias com temperatura do ar elevada, fenómeno que é pouco intuitivo mas de explicação científica relativamente simples.

Foi o que se verificou na passada 2ªf, dia 31 de maio, segundo a informação fornecida pelo IPMA –  Instituto Português do Mar e da Atmosfera, durante a tarde e início da noite em alguns locais das regiões da Beira Alta e, especialmente, de Trás-os-Montes. Efetivamente, naquelas regiões e durante aquele período, foi observada abundante precipitação sob a forma de granizo e saraiva, sendo por vezes identificadas pedras com diâmetro claramente superior a 3 cm.

Na informação divulgada pelo  Instituto Português do Mar e da Atmosfera  é dito que ao longo do dia um núcleo depressionário centrado sobre a península Ibérica deslocava-se para norte. Sobre o Atlântico, a oeste da costa portuguesa, uma depressão do tipo cut-off, também designada por “gota fria” (depressão com expressão essencialmente em níveis altos e caraterizada pela circulação de ar mais frio em torno do núcleo do que o ar das suas vizinhanças) intensificava-se. Durante a tarde o aquecimento radiativo era intenso e a temperatura máxima do ar aproximou-se e, em muitos casos, excedeu, o valor de 30°C, em particular nas Beiras e Trás-os-Montes, sendo os valores de humidade relativa do ar geralmente baixos (inferior a 30% em alguns locais). No entanto, a coexistência de ar frio em altitude, transportado na circulação da referida cut-off, e de ar quente nos níveis inferiores da troposfera, potenciado pelo referido aquecimento radiativo, favoreceu condições de grande instabilidade atmosférica. Esta, segundo o modelo do ECMWF (Centro Europeu de Previsão do Tempo a Médio Prazo) traduzia-se, em alguns locais, por valores de CAPE superior a 1500 J/kg no período 15-18 UTC (16-19, hora local).

Os valores de água precipitável eram moderados, da ordem de 20-25 mm e o nível da isotérmica de zero era bastante elevado, situando-se a cerca de 3700 m de altitude.

Na camada 0-6 km os valores de wind shear vertical (variação da magnitude e rumo do vento horizontal ao longo da camada vertical) não eram extremos mas asseguravam, apesar de tudo, alguma inclinação das células convectivas e projeção das respetivas bigornas no sentido do quadrante norte, conforme confirmado com observação radar (Fig 1). Por outro lado, quer as indicações do ECMWF, quer as observações com radar, confirmavam a presença, durante a tarde, de um fluxo de oes-sudoeste abaixo dos 1500 m de altitude, proveniente do Atlântico, que se intensificava e rodava para sul acima deste nível. Este escoamento de ar húmido aos níveis baixos alimentava as células convectivas que, com a instabilidade disponível até níveis bastante elevados, da ordem de 14000 m de altitude, se iam formando. A proximidade, a noroeste, de uma corrente de jato em níveis muito elevados favorecia divergência em altitude contribuindo, também, para manter a continuidade do processo convectivo até esses níveis.

Este quadro de grande instabilidade atmosférica, com particular magnitude em camadas extensas acima do nível da isotérmica de zero, garantiu movimentos ascendentes fortes a esses níveis, potenciadores do brusco arrefecimento da água transportada, mediante a contínua disponibilidade de humidade em níveis baixos.

Por si só, este contexto é suficiente para explicar a formação de granizo, em sentido lato. No entanto, a formação de pedras de gelo com grande dimensão (saraiva) e a sua relativa abundância ficaram a dever-se a um fator suplementar: um perfil vertical de vento eficaz. De facto, para que as pedras de granizo formadas entrem em ciclos de crescimento prolongado em níveis muito elevados da troposfera é necessário, por um lado, que o wind shear seja suficientemente forte para manter as correntes ascendentes e descendentes relativamente separadas (de modo a assegurar que o processo convectivo seja duradouro) mas, por outro, que não seja excessivamente forte a ponto de as referidas correntes perderem o contacto, caso em que o granizo precipitaria pouco após a sua formação, não tendo tempo suficiente para crescer.

O radar de Arouca/Pico do Gralheiro (A/PG) permitiu efetuar a monitorização detalhada de múltiplas células convectivas geradoras de granizo e saraiva, de que se apresenta um exemplo ocorrido próximo de Vila Real (Fig 1). Na imagem de corte vertical das 17:00 UTC (18:00, hora local) o radar permitiu identificar valores de refletividade (Z) acima de 58 dBZ a grande altitude (cerca de 5000 m), sendo inclusive observável refletividade que se destaca a 15000 m de altitude, claramente acima do nível geral dos topos observados. Estes factos demonstram a presença de correntes ascendentes muito vigorosas. É também visível (Fig 2) que na região do núcleo convectivo, em imagem de corte vertical, os hidrometeoros foram classificados como granizo e graupel (esta última classe correspondente, na presente classificação de hidrometeoros, a graupel propriamente dito mas também a granizo de pequeno diâmetro). Estas observações refletem a presença de pedras de granizo de grande dimensão em níveis elevados. Não obstante a temperatura do ar ser elevada, junto ao solo, pouco antes de a queda de granizo e saraiva serem observadas, o transporte rápido de ar frio, descendente, que acompanha a precipitação deste tipo de hidrometeoro, permitiu que uma fração razoável das pedras tenha alcançado a superfície sem ter derretido e ainda com dimensão apreciável, conforme a realidade observada no solo e que foi documentada em muitos locais da região durante a tarde do dia 31 de Maio.

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